Por
todas as esquinas da remota cidade de Santo Estevão dos Diamantes, era possível
ouvir murmúrios alegres intercalados de pesares receosos. Em um sábado de
setembro, a cálida e preguiçosa manhã que acalentava com seu brilho tímido a
cidade e as paredes rochosas das minas abandonadas, o contento do povo era
apaziguador aos pequenos e redondos olhos do prefeito que se mantinha inquieto
desde o dia anterior. O velho homem gordo passeava com sua bengala branca
cruzando as ruelas onde o povo conhecido cumprimentava-o feliz na praça.
Sempre
que possível, observava o padre demonstrar sua caridade, oferecendo um pão
quente e fofo para as crianças que corriam felizes e dispostas. Todas estavam
lá, exceto uma.
Para
Nathanael, sua paróquia, sempre presente e pontual, esbanjava graça e fé.
Observando por cima do ombro notou que as únicas pessoas que não condiziam com
aquele cenário eram um casal, que sentados nos últimos bancos da igreja, pediam
atenção para um comunicado.
—
Atenção, moradores e moradoras diamantenses, nós precisamos da ajuda de vocês.
Todos
se atentaram a ouvir o pronunciamento do casal, que abatido, se levantou.
Olhavam para trás nos bancos de madeira de mogno, enquanto esperavam
pacientemente a missa começar após o ofertório de pão do padre na praça, uma
tradição longínqua desde que a igreja fora criada, durante a semana de
aniversário do fundador da cidade quando Sir Edward distribuía pão aos pobres
no dia.
O
prefeito atentou-se ao casal, prevendo o que aconteceria. Escorando-se ao canto
da parede de pedra polida e conservada, passou pelo padre sem lhe notar,
deferindo um olhar vil ao homem que agora abraçava a sua esposa.
—
Nossa filha, nossa pequena Clarissa desapareceu — disse a mulher chorosa,
segurando firme sua Bíblia no braço. O marido a apertou contra si, num gesto de
conforto, mas a expressão em seu rosto não estava muito melhor que a dela.
Algumas pessoas esboçaram expressões de compaixão, outras sussurraram entre si
— Nossa Clarissa não costuma sair sem permissão, sempre foi uma criança muito
doce... — sua voz se quebrou no meio da frase — Peço que se souberem de
qualquer notícia, comuniquem as autoridades.
—
Vamos fazer uma oração para que Deus possa atender nossas preces — sugeriu uma
vizinha, recebendo um triste assentimento de cabeça como resposta por parte dos
pais.
Assim,
todos os presentes se levantaram, deram as mãos e juntos entoaram um Pai Nosso
e uma Ave Maria, desejando em mente que ela fosse encontrada logo.
As
pessoas de fora da igreja de Santo Estevão permaneciam amenas apreciando o
aroma dos ventos limpos que sopravam naquela manhã de paz, e o comércio
despertava para seu curto período de trabalho.
Esquecendo-se
por hora da cena dramática, o prefeito ajeitou sua corpulenta barriga dentro de
sua calça, ajustando os suspensórios. Observava, com um brilho de satisfação no
olhar, o despertar de sua pequena, porém próspera cidade. Repassou mentalmente
alguns de seus projetos políticos, saboreando as perspectivas de reeleição que
adviriam de seus planos. Ouvia, com certo prazer, o titubeante som de seu
pequeno cajado. Para muitos homens, aquele era um símbolo da fraqueza, do
findar da existência. Para ele, imerso nos antigos ideais de grandeza, era um
sinal de seu poderio; tal qual o cetro dos reis, ou o báculo dos magos. Sabia
estar adentrando o entardecer da vida, como no enigma de Édipo, apenas se
metamorfoseava no terceiro animal. Muitos temiam a velhice, mas ele a degustava
como um portento divino, um dom alçado por poucos, a encarnação da sabedoria.
Seguia altivo, orgulhoso de si mesmo. Quando seus planos estivessem concretos,
nada poderia impedir o seu derradeiro voo. O próprio Ícaro o invejaria.
Cruzou
a rua a passos lentos, sempre atento ao movimento ao seu redor. Crianças
brincavam na praça, onde tinha planos de mandar construir uma estátua com seu
próprio busto, e vendedores ambulantes já se instalavam no local. Aquilo lhe
causou um ligeiro desagrado, que logo foi substituído ao passar diante da
delegacia. Do outro lado da rua, um caminhão estava estacionado em local
proibido, e não foi necessário esperar muito para ouvir a melodiosa voz que
tanto adorava. Detrás do enorme veículo estava a bela delegada da cidade, e
algum pobre coitado que tivera a má sorte de burlar a lei onde Nathalia pudesse
ver.
Philias
se aproximou com dobrado entusiasmo, à tempo de vê-la levar as mãos à cintura e
bater o pé no chão. Seu cabelo castanho estava preso em um rabo de cavalo, e
usava um conjunto de jeans e camiseta pouco elegante, com um pesado coldre na
altura dos quadris. Ainda assim, parecia-lhe terrivelmente sensual,
principalmente se estava zangada.
—
Escute bem, Sr. Pereira, porque não direi outra vez. Retire seu veículo daqui e
procure um lugar adequado para descarregar... — Ela gesticulou para o interior
do caminhão — Essas coisas!
—
Ora ora, o que temos aqui...
Nathalia
se voltou para ele de supetão, avaliando-o com a mesma postura de detentora da
lei. A única alteração foi um leve arquear de sobrancelhas.
—
É exatamente o que o senhor está vendo, senhor prefeito. — Sem esperar
resposta, ela se voltou para o motorista. — Estamos entendidos?
—
Espere, espere, minha querida. — Disse Philias, destilando uma doçura atípica,
que poucas mulheres teriam a honra de conhecer. Nathalia sentiu que seus miolos
iriam explodir, antes que terminasse o dia. — Este não é o equipamento para a
montagem do palco?
Ela
deu de ombros, como se a questão fosse irrelevante. Um enorme sorriso se abriu
no rosto gorducho do homem.
—
Ah, isso é bom, muito bom. Porque não deixa que os senhores façam seu trabalho,
e me acompanha para tratar de um assunto mais importante?
—
Eu estou realizando meu trabalho, senhor. — Respondeu entre dentes, repassando
suas reservas mentais de desculpas para se livrar de homens detestáveis.
O
prefeito meneou a cabeça, tomando-a pelo cotovelo sem pedir permissão.
—
Isto é apenas um detalhe, acredite em mim. Dentro de algumas horas o cenário
estará pronto, e não terá que vê-los outra vez... — O prefeito ficou sério,
perdendo o brilho bem humorado, que geralmente usava para lidar com ela.
À
contra gosto, Nathalia o acompanhou, cruzando a rua em direção à delegacia, e
lançando um olhar fulminante ao caminhoneiro por sobre os ombros.
—
Isto é terrível, mas me vi na obrigação de comunicar-lhe que uma criança
desapareceu nesta manhã. — Nathalia lhe dirigiu um olhar cético.
—
E onde estão os pais dessa criança, que não vieram prestar queixa no local
adequado?
—
Na igreja. — Respondeu sucintamente, no que a postura da policial se alterou
ligeiramente.
Grandes
crimes não aconteciam em Santo Estevão. Era uma cidade pequena e pacata, que
gozava de certo isolamento com respeito às demais cidades de Minas Gerais. Fora
fundada por um grupo de desbravadores ingleses, durante o século XVII, que
foram mais tarde acossados pelos portugueses. Durante o século XIX, colonos
ingleses repovoaram o lugar. A cidade foi praticamente abandonada durante a
década de 20, sendo redescoberta somente nos anos 60. Portanto, custava-lhe
acreditar que Philias C. D. o dizia a sério.
—
É uma criança, é provável que esteja brincando de “esconde-esconde” com os
pais, senhor Prefeito.
Philias
voltou a menear a cabeça.
—
Eu não gostaria que nada de ruim acontecesse à essa menina. É minha obrigação
prezar pelo bem dessa cidade... Porque não vem almoçar comigo, hoje? Podemos
decidir a melhor maneira de cuidar da segurança do show e... — Nathalia o
interrompeu, conhecendo o rumo que aquela conversa tomava.
—
Não é necessário, mas eu agradeço a gentileza. — Com um sorriso forçado no
rosto bonito, a policial se afastou. — Mandarei uma equipe de busca para falar
com os pais da menina, como disse que se chama?
—
Eu não disse, mas não será difícil encontrar seus pais. — Devolveu com um
sorriso de simpatia que não a agradava nem um pouco. Havia algo perigoso no
jeito como aquele homem se expressava.
—
Muito bem, farei isso, e também cuidarei para que nada de ruim aconteça no show
de aniversário da cidade. Com licença, espero que tenha um bom dia.
Nathalia
sustentou um sorriso nos lábios até estar de costas para o prefeito, e poder
entrar na delegacia. Ao que parecia, o dia prometia.
O
prefeito observou a mulher caminhando em passos determinados até desaparecer do
seu campo de visão. Philias virou-se para a rua e o sorriso desapareceu de sua
face ao notar que ninguém o observava. A festa, o desaparecimento da garotinha,
as expectativas para o show, a reunião importante que ele era obrigado a
participar naquela mesma manhã, tantas coisas misturavam-se em sua mente, e
confundiam-se em comentários mentais. Balançando sua cabeça rapidamente, ele
seguiu adiante, até a prefeitura. Algumas pessoas cruzaram o seu caminho, e
acenaram positivamente com a cabeça, o homem imitou o gesto, mostrando os
dentes numa expressão forçadamente simpática.
Ele
ajeitou o paletó em seu corpo gordo e preparou-se para atravessar a rua, seus
passos imponentes, acompanhados pela bengala foram impedidos por um homem que
estava parado diante do prefeito. Matt, um homem de pouco mais de trinta anos,
com olhos intensamente castanhos e cabelo e barba negro que combinavam
perfeitamente com as vestes maltrapilhas encaravam o homem gordo.
—
Bom dia, senhor prefeito.
—
Bom... Bom dia? — o prefeito arqueou uma sobrancelha, olhando ao redor
incomodado.
—
Já sabe do desaparecimento da garotinha? — Matt questionou, tentando parecer
simpático, mas a expressão de Philias mostravam claramente que não conseguiria
tal coisa.
—
A cidade toda já sabe, e eu tenho muitas coisas a fazer, devo seguir adiante...
Então... Com licença.
—
Eu gostaria de lhe dizer que eu conheço muito bem a minha casa e, se ainda não
sabe, ou suspeitou, esta é minha casa. Eu queria...
—
Matt, depois nós nos falamos - a voz do prefeito demonstrava claramente seu
nervosismo, e Matt consentiu, cruzando os braços e deixando o velho gordo
seguir adiante. O homem de vestes maltrapilhas seguiu na direção oposta, e ao
cruzar uma esquina, esbarrou violentamente contra alguém que corria apressada
em sua direção.
A
garota, de uniforme de garçonete por baixo de uma jaqueta de couro vermelho
encarou o morador de rua e sorriu simpaticamente, ajeitando algumas mechas para
trás da orelha e destacando os traços finos e delicados do seu rosto jovial.
—
Me desculpa! Eu sou uma tapada mesmo!
—
Tudo bem... Não precisa se desculpar - Matt acariciou o ombro da garota, que
continuava a olhá-lo fixamente:
—
Eu te machuquei?! Se sim, mil desculpas, você nunca fez nada contra mim. Na
verdade, você não parece fazer mal a ninguém, não é?
—
Oh... Não — ele não conteve o sorriso.
—
Isso é bom, meu nome é Samantha.
—
Matt — os dois apertaram as mãos.
—
O sábado está só começando, a festa tá fazendo uma bagunça na cidade inteira,
você já deve ter percebido, e a Rovena chamou todo mundo pra fazer uma
arrumação lá no bar. Você sabe, não é?! Eu trabalho lá, mas é temporário, eu
preciso seguir adiante — ela sussurrou a última parte.
—
Você vai trabalhar agora? — ele questionou, franzindo o rosto.
—
Sim, e eu nem tomei café ainda. Você também não, tá com fome? Com certeza deve
estar! Vem comigo, te pago um café — ela sugeriu, tentando parecer simpática.
—
Eu nunca tive um encontro. — ele sorriu.
—
Eu sou lésbica. — ela mentiu, e ele assentiu.
Matt
concordou em tomar um café com aquela excêntrica garota, e enquanto seguiam em
direção ao bar, ele olhou pelo canto dos ombros para a prefeitura, com
suspeitas palpitando a mil em sua cabeça.
Alguns
minutos depois, os dois chegaram ao pub da Rovena, o point da cidade. Ao
abrirem a porta, o solo da guitarra de Hendrix os recebeu numa onda de
distorções. A iluminação amena revelava um ambiente longo e amplo, repleto de
mesas de madeira polida e paredes cobertas por coloridas figuras. O balcão,
também de madeira, ficava do lado esquerdo do ambiente e um palco baixo para
apresentações, no outro extremo.
O
cheiro de sabão tomava o lugar. O chão molhado fez Samantha e Matt andarem com
mais cuidado enquanto adentravam o bar. Um rapaz de calças dobradas até o
joelho, camisa branca e pés descalços sorriu para os recém-chegados enquanto se
apoiava em um rodo.
—
Olá, Sammy — saudou sacudindo os cabelos negros e molhados — Chegou cedo, não?
—
Oi, Augusto — respondeu com um sorriso reluzente — É que a Rovena disse que
hoje seria um dia bem corrido por causa da festa e me pediu para vir mais
cedo... Por falar nisso, onde ela está?
—
Está lá dentro recebendo uns fornecedores e conferindo a mercadoria... —
apontou para o mendigo — Seu amigo?
Samantha
olhou para Matt, que estava a alguns passos afastado dela, e fez um gesto para
que se aproximasse.
—
Este é o Matt. Eu esbarrei com ele na rua e resolvi chama-lo para tomar café
comigo... Ah, Matt. Este é o Augusto, meu... Colega de trabalho — enrubesceu
pela hesitação. Não notou, mas tanto Matt quanto Augusto reprimiram um sorriso
— Augusto é afilhado da Rovena. Você deve conhecê-la, não?
—
Rovena? Rovena Possa? Ha. Que homem não conhece Rovena Possa? — disse Matt
rindo.
Houve
um silêncio. Samatha olhou com um olhar repreensivo e assustado para Matt, que
baixou o olhar, constrangido. Ia começar a pedir desculpas quando ouviu um riso
baixo.
—
Tudo bem, Samantha. Não precisa se preocupar — Augusto estava com o lábio
repuxado num sorriso torto e malicioso enquanto recomeçava a empurrar a água
com o rodo.
—
Augusto, teria algum problema se você conseguisse algo pra gente comer? Estamos
famintos — disse a garota mudando de assunto.
—
Claro que não. Sentem aqui — desvirou as cadeiras de cima de uma mesa e
limpou-a com um pano que trazia pendurado no bolso — Vou lá dentro dar uma
olhada no que consigo pra vocês.
Quando
o rapaz estava saindo, Matt percebeu que o olhar de Samantha o seguia.
—
Desculpe ser indiscreto, mas... Não tenho tanta certeza de que você seja
lésbica, garota.
No
momento, ela não entendeu. Depois percebeu o motivo da afirmação.
—
Não é o que você está pensando. Somos apenas amigos... Colegas de trabalho... —
abaixou a cabeça constrangida, depois a levantou, desafiadora — Tenho uma
extrema consideração por ele, é verdade, mas apenas porque foi ele quem me
ajudou desde que cheguei à cidade. Convenceu Rovena a me deixar trabalhar aqui
e me adiantou o salário ao saber que eu não tinha nada. E foi do dinheiro dele.
Nem sabia quem eu era e me ajudou mesmo assim. E ainda disse que eu não
precisava me preocupar com o reembolso, que eu pagaria aos poucos pra não ficar
pesado para mim... — olhou para as mãos — Ele é um bom rapaz... Um ótimo amigo.
Eu gosto dele — levantou os olhos, atordoada — Como amigo, é claro!
Matt
disfarçou um sorriso e acenou afirmativamente com a cabeça.
—
Claro. Quem está duvidando disso?
Na
cozinha, Augusto preparava ovos mexidos quando Rovena entrou balançando seus
cabelos tingidos de um vermelho. Seu perfume forte e característico se
sobressaiu ao cheiro da comida.
—
Ovos? Para quem? Pensei que você já havia tomado seu café, menino — levantou as
sobrancelhas fina que adornavam seus olhos fortemente pintados.
—
Já sim, tia. São para Sammy — derramou os ovos num prato branco e desligou a
chama que esquentava a chaleira d’água.
—
Que bom que ela já chegou. Passe os preparativos para ela, sim? — olhou de viés
para o rapaz antes de sair batendo seus saltos Chanel — E já disse para não me
chamar de tia. Sinto-me 20 anos mais velha.
—
Certo, tia — sorriu jocosamente enquanto terminava de coar o café — Quer dizer,
Rovena — piscou para a madrinha que o reprovou num aceno de mão ao sair.
Samantha
e Matt conversavam quando Augusto chegou com os pratos e o café.
—
Aqui está. Café de primeira — colocou os ovos, os pães e a garrafa de café em
cima da mesa — Vou buscar os copos — foi até o balcão e alcançou duas xícaras —
Sobre o que falavam?
—
Nossa, Augusto! Obrigada. Não pensei que ia se dar ao trabalho de fazer tudo
isso — disse Samantha enquanto servia-se.
—
Besteira. Foi coisa rápida e simples — piscou para Samantha que enrubesceu.
—
Falávamos sobre a garotinha que sumiu — disse Matt.
—
Ah, sei — disse sem emoção — Ouvi sobre isso. Um dos rapazes que descarregava a
mercadoria comentou. Ainda acho que não houve nada. Ela deve estar escondida.
Pode ser que tenha se perdido ou esteja na casa de alguém. Sabe como são as
crianças, não é?
—
Mas, Augusto, eu ouvi falar que ela não era dessas crianças — rebateu Sammy com
uma ponta de indignação pela falta de sensibilidade dele — Não costumava fazer
isso. Disseram que os pais dela falaram que ela não costumava sair de casa
sozinha, muito menos à noite.
—
Sim, sim. É verdade. Ela era uma menina tranquila — completou Matt.
Augusto
deu de ombros, levantou da mesa e pegou novamente o rodo.
—
Crianças são crianças. Nunca se sabe o que se passa por aquelas pequeninas
cabeças cheias de dúvidas. Ela pode ter mudado, por que não? Pode ter cansado
de fazer as mesmas coisas e obedecer a todos o tempo inteiro. Pode ter decidido
fazer algo por conta própria — começou a empurrar a água mais energicamente e a
falar com traços de revolta na voz — Ela pode ter percebido que era,
literalmente, uma boneca para todos, fazendo tudo que mandavam.
Samantha
e Matt se entreolharam ao perceber a atitude do rapaz.
—
Mas, Augusto, ela é uma criança. Não é bem assim que as coisas funcionam —
disse a garota — Cansar de algo e fugir de casa não é uma atitude certa para
uma criança tomar.
—
E o que é certo? O que as crianças devem fazer? Tudo o que nós, adultos,
mandamos? E nós? Nós sabemos o que estamos mandando? Sabemos o que é o melhor
pra elas? — Augusto começava a falar mais alto, gesticulando — Nós não sabemos
nem cuidar das nossas próprias vidas quanto mais cuidar de um projeto de vida.
Apenas
os sons da água e da guitarra ficaram no ar. Matt observava o rapaz fazer o seu
trabalho. Samantha abaixou os olhos e levantou a xícara de café à boca. Ficaram
um tempo nessa situação até Matt terminar de comer.
—
Bem, eu acho que devo deixar vocês trabalharem. Samantha, muito obrigado pelo
convite e, Augusto — o rapaz virou-se — Obrigado pelo café, estava ótimo.
—
Por nada. Apareça de vez em quando — acenou para o homem e voltou ao trabalho.
—
Até mais — apertou a mão da garota e retirou-se batendo a porta atrás de si,
deixando para trás Hendrix e o cheiro de sabão.
As
ruas do lado de fora do bar estavam movimentadas, dezenas de pessoas circulavam
pelas calçadas saindo da Estação Férrea Maria Antonieta dos Diamantes, frente
ao estabelecimento. Era um dia atípico para a cidade, pois muitos se
desembarcavam para o evento proposto pelo prefeito, que chamava toda a região
festeira. A linha de trem interligava as cidades próximas ao Porto de Vitória,
no litoral, transportando passageiros e minério de ferro para as metalúrgicas e
o porto do estado adjacente. O minério de ferro era decisivo para a economia
local.
Seguindo
as ruas pavimentadas, desviando de poucos carros, chegou a praça, sua moradia.
Do lado esquerdo do playground, estavam dezenas de homens montando as estruturas
do palco que se encontrava quase finalizado. Carregando as barras metálicas nos
braços com ajuda, um homem colocou-a apoiada na parede mais próxima, exausto.
—
Dia cansativo, Ruan? — questionou Matt chegando próximo ao rapaz que enxugava o
rosto com a camisa, mostrando seu abdome definido.
—
Muito — revelou o moreno de traços espanhois — E eu ainda tenho que me preparar
para o show mais tarde. Isso que dá ajudar em tudo. O folgado do Marcos
continua trancado em seu escritório. Diz que está compondo...
—
Ele é bom músico, apesar das letras serem sempre tão fortes, não é mesmo?
—
Faz parte dele. Somos uma banda de rock, afinal, mas nem todas são assim.
—
Ele é um homem centrado, sempre na dele. Quietão... — comentou o mendigo que
havia o observado.
—
Falando do diabo — Ruan riu.
—
Falam de mim? — perguntou Marcos, um homem de cabelos castanhos claros, olhos
cinzentos e roupas neutras chegando com equipamentos musicais abarrotados aos
braços — Não me chame assim, este nome é só para os íntimos — brincou.
—
Está atrasado — Ruan revirou os olhos — Pelo menos conseguiu terminar a música?
—
Sim. Hoje ensaiamos com os riffs que criou semana passada. Mas não estava só
compondo. Preciso terminar minha matéria pro jornal da cidade.
—
O desaparecimento da garota? — interpelou Matt, sentando-se na mureta do
canteiro mais próximo — Estão todos comentando sobre isso.
—
Notícias correm depressa por aqui — riu — Mas sim, conversei por telefone com
Roberta, a mãe da garota. A menina estava em casa quando sumiu de repente. Não
tem nem 12 anos pra fugir. Isso é suspeito demais, não acham?
—
Concordo, muito estranho — disse Matt eriçando o cenho — Ela mora distante,
pelo que eu saiba. Acha que foi sequestro?
—
Pode ser, mas pelo que sei, a polícia não pode fazer nada no momento pelo pouco
tempo de sumiço. Só resta a população ajudar nas buscas.
—
Como fico sempre por aqui não vi nada de diferente — disse o mendigo pensativo
— Ela mora próximo a mina. Conheço a família de vista.
—
Mas me conte, Matt, e a sua família, amigo? — questionou Ruan, sentando próximo
ao sujeito no muro baixo — Odeio ver pessoas na sua situação. Você não deveria
ficar aí jogado. Já procurou ajuda?
—
Não tenho do que me envergonhar nem a quem recorrer, vivo nas ruas por que a
vida me fez seu morador. Nasci nelas. Fui encontrado dentro de caixas de
papelão, próximo ao lixão daqui por minha querida Matilda, a mulher que me
criou. Que Deus a tenha — fez um sinal da cruz — A amava muito. Mas desde que
ela se foi, eu me encontro aqui jogado e desempregado. É uma pena que passe
desconforto a vocês.
—
Você é muito inteligente, Matt, poderia dar a volta por cima se tentasse ser
empregado — disse Ruan, com olhos sinceros — Estamos precisando de pessoas que
ajudem a montar os palcos. Como pôde ver, sou um pouco ocupado.
—
Muito obrigado, mas não acho que resultaria em boas coisas. Pode não parecer,
mas eu também me mantenho ocupado. Meu plano de vida é diferente do da maioria.
—
Com o que se mantém ocupado, Matt? — perguntou Marcos ressurgindo na conversa.
—
Com coisas particulares que não convém ao caso — mudou rapidamente de humor com
a pergunta — Tenham um bom dia — e dizendo isso, saiu apressado do canto, indo
se refugiar no chão da praça, próximo a uma árvore majestosa, seu abrigo de
dias de sol e chuva, onde não tardou a se espreguiçar. Alguns minutos depois,
um homem, saindo de um restaurante lhe ofereceu uma marmita e ele lhe devolveu
um sorriso agradecendo.
Marcos
e Ruan se entreolharam, erguendo as sobrancelhas.
—
Isso foi... No mínimo estranho — comentou Marcos, ajeitando os aparelhos em
seguida.
—
Não que sejamos as pessoas mais normais de São Estevão...
Os
dois caminharam juntos na direção da casa de Misaki, a jovem baixista da banda
Fobia, da qual faziam parte. Andaram em silêncio por um longo momento, um clima
quase sepulcral, um tanto atônitos com a atitude de Matt.
—
Algo nessa história me intriga, especialmente o Matt... — Marcos enfim
desabafou, compenetrado.
—
Acho que aquele mendigo não bate bem da bola — Ruan gracejou.
—
Ele é mesmo excêntrico... — Marcos admite — O jeito como ele agiu...
—
Muito suspeito, não?
—
Sim.
—
Acha que ele tem algo a ver com o desaparecimento da garota? — perguntou Ruan —
É um mendigo, anda sem rumo pelas ruas e despercebido. Acho que ele facilmente...
—
Acho que não seria para tanto, Ruan — Marcos o interrompe — Matt pode ter algum
segredo, mas não creio que seja um sequestrador.
—
E a história dele? Será que é verdadeira? — Continuou Ruan. — Só Deus sabe se
ele não veio de um mundo de lagartas falantes e casas de cogumelos — Sua
expressão era jocosa.
—
Sim — Marcos disse — Eu conhecia Matilda, e todos sabem da história do menino
encontrado na caixa.
Ruan
assentiu, não desejava mais ocupar sua mente com aquilo, ao contrário de
Marcos, sempre instigado e pensativo.
Por
fim, chegaram na casa de Misaki. Tocaram a campainha e aguardaram. Logo, a
porta se abriu, revelando a jovem baixista da banda. Os longos cabelos negros
azulados esvoaçaram com o vento, Misaki sorriu.
—
Estão atrasados — foi o que ela disse, com um falso franzido de cenho.
—
A culpa é do Marcos — Falou Ruan, evidentemente se esquivando da
responsabilidade.
—
Todos são culpados, Ruan... Todos são sempre culpados... — Marcos ainda
conservava o tom distante.
—
Parem os dois, temos muito o que decidir hoje... — Misaki saiu e fechou a porta
— Vamos ensaiar na garagem.
Ela
se colocou na frente e pegou as chaves no bolso.
—
Terminou a música, Marcos? — Misaki perguntou.
—
Sim — Respondeu, decidido a esquecer o caso da garota por um tempo. — Essa
música será de matar!
Cada
um pegou seu devido instrumento. Começaram então a tocar Eutanásia, para
aquecer os instrumentos.
Qualquer
um que se aproximasse da casa, poderia ouvir o som pesado da música de quase
catorze minutos de duração, intercalada com poderosos riffs de guitarra e
vocais que recordavam um canto gregoriano, algo que memorava o requiem de
Mozart.
***
Matt
repousava em meio a grama, após o breve almoço. Um grupo de crianças, que
brincavam proximamente, decidiram importunar o transeunte. O maltrapilho
despertou com os pequenos cascalhos que lhe lançavam. Ainda aturdido,
praguejou:
—
Pirralhos malditos, por que também não tomam chá de sumiço?
Os
pequenos tomaram distância, gargalhando, enquanto seguiam para o local dos
preparativos para a festa. Seria um evento grandioso, do tipo que a cidade
interiorana não via desde o êxodo populacional. Pessoas da região aportavam na
estação, o acesso mais fácil para a cidade encravada na rocha, como o precioso
minério que lhe dava nome. Um rapaz, de vinte e tantos anos, desceu da
plataforma de madeira e ferro, e seguiu caminhando pela centenária estrada de
paralelepípedos que desembocava em um moderna avenida asfaltada.
—
De volta ao lar. — Disse, para si mesmo, esboçando um leve sorriso.
Após
uma boa caminhada, chegou a Praça principal. Matt ainda vociferava imprecações
contra os meninos.
—
Ora, deixe disso, meu bom Matt. — Comentou humorosamente o rapaz, enquanto
ajeitava seus óculos arredondados.
O
morador de rua, olhou para trás, reconhecendo o homem.
—
Ninguém gosta de ver sua casa invadida, Sr. von Gilcher. — Replicou Matt, com
um ar malicioso.
—
Faz-me sentir vinte anos mais velho, Matt! Trate-me apenas por Fausto, pois
bem? — Devolveu o rapaz, notavelmente bem humorado.
—
Como não se esforçasse para parecer...
Matt
acertadamente se referia aos elegantes trajes de Fausto, que o fariam parecer
oriundo de algum livro de História.
—
Rasputin quer me dar uma lição de moda? — Gracejou o rapaz.
—
Os sujos gostam de falar dos mal-lavados, sire. — Matt pareceu pensar um pouco.
— Rasputin, Rasputin... Nunca me deram um nome tão belo.
—
Vejo que fez bom uso do livro que lhe dei antes de viajar.
—
Tenho tempo de sobra para ler.
—
E eu tenho que fazer as pessoas terem leituras para ocupar seu tempo. Vamos,
Matt, acompanhe-me. Há alguns livros que não servem para serem vendidos e que
sei que lhe farão bem. — Fausto ajeitou os óculos novamente. — Faço-lhe um
café. — Acrescentou.
Ambos
seguiram até a rua do comércio, parando sob a inscrição
"Mephistopheles", que marcava uma fachada gasta, acima de uma pequena
loja. O estabelecimento funcionava depois do horário de almoço, de segunda a
sábado, e por vezes, de domingo. Contava com os mais recentes lançamentos
editoriais, que contrastavam com livros antigos, clássicos literários de
páginas pardacentas como a pele morena clara de Fausto. Havia mesmo um ar de
Rasputin em seu acompanhante, que exibia uma barba negra e a mesma indisposição
para banho do bruxo russo, tido por alguns conspiradores como responsável pela
ruína do Império Russo, que culminou com a chacina da família do czar Alexander
II, o último dos Romanov.
—
Não imaginava que fosse encontrar tanto estardalhaço após o tempo que estive
"desaparecido". — Comentou o livreiro.
—
Por falar em desaparecimento... uma pequena Anastasia sumiu...
—
Pois mais estranho seria que aparecesse. — Disse o livreiro, tendo em mente
ainda a Revolta Bolchevique. Alguns segundos depois, percebeu o trocadilho. —
Um momento! Você não está falando da princesa russa ?!?
—
Sou dado a gracejos, "sire". — Novamente usou o termo nobre, uma
espécie de honroso e ao mesmo tempo jocoso título que dava ao livreiro, para
debochar um pouco de seus trejeitos. — Mas o que me refiro não é nada
engraçado. — Por um momento, um fio de tristeza, passageiro, tocou seus olhos
remelentos. — Uma criança de fato sumiu.
—
Que lamentável... Mas é estranho que numa cidade tão pequena alguém consiga
sumir assim. Teria que ser invisível para não ser rastreado pelos olhos
bisbilhoteiros de São Estevão dos Diamantes. Espero que logo a encontrem...
Talvez tenha se perdido nas minas...
Fausto
entregou o livro surrado, e uma xícara de café fumegante ao mendigo, que logo a
bebeu. Com o livro em mãos, fez menção de se retirar.
—
E para onde vai, Matt? — Indagou Fausto.
—
Qualquer caminho me serve, "sire".
—
Só quando não se sabe onde se quer chegar, Matt...